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Introdução e Justificativa

A Inglaterra do século XIX foi palco e, ao mesmo tempo, espectadora da multidão que vivia em cada esquina da Londres industrializada. O acumulo de pessoas, somado com a falta de higiene, multiplicadas pelas péssimas condições de trabalho da vida fabril, resultou em uma sociedade pobre, carente e doente que, na visão burguesa, era um mal para a cidade, sobretudo para a sociedade burguesa e que, essa massa, caminhava para a degeneração. “Londres contava com mais de quatro milhões de habitantes em 1890. Darwinistas sociais acreditavam que a multidão que vivia nos bairros operários de Londres estava degenerando, ou seja, pobreza associada à degeneração física.” (DIWAN, 2007, p. 35).

Foi com essa atmosfera que Francis Galton lançou a sua ideia que, simplificamente falando, era de “eliminar todos aqueles que contribuíam para a degeneração física e moral, impedindo-os de procriar ou de se perpetuar na sociedade” (DIWAN, 2007, p. 37). Além de promover e incentivar o casamento de pessoas que, ao contrário dos “degenerados”, tinham, de acordo com a burguesia da época, “bons” atributos físicos e mentais para povoar a sociedade com “bem nascidos”. Essa “ciência” foi chamada de Eugenia.

 

“Dessa forma, a eugenia, proposta como teoria da herança, proporcionou a base necessária para que se desenvolvesse uma série de desdobramentos laboratoriais e práticas experimentais sustentadas pela pressuposição de que as condições sociais resultariam, enquanto consequências da ação humana, da ploriferação de características físicas e psíquicas transmitidas de geração para geração. Ao selecionar, por intermédio de um controle social dos cruzamentos, determinados traços comportamentais, o eugenista estaria contribuindo para que os elementos degenerativos fossem eliminados e os elementos benéficos fossem conservados.” (CONT, 2008, p. 215) 

 

“A eugenia na Alemanha está diretamente ligada à ascensão de Hitler aos poder, em 1933. No entanto, não é verdadeiro dizer que as ideias eugênicas pertencem exclusivamente à ideologia nazista” (DIWAN, 2007, p. 63). Mas podemos dizer que o nazismo justificou suas atitudes com bases na eugenia. Um exemplo disso são as leis de esterilização e de “proteção e honra ao sangue alemão”. A primeira, aprovada em 14 de julho de 1933, teve, segundo Diwan, influências nas leis de esterilização norte americanas e que dizia que “Toda pessoa portadora de uma doença hereditária poderá ser esterilizada (...) se for atestado que há uma grande probabilidade de que os descendentes dessa pessoa sejam afetados por um mal hereditário (...)”(DIWAN, 2007, p. 66). A segunda lei, que estava afim de “proteger o sangue alemão” proibia os casamentos inter-raciais, ou seja, entre alemães e outros grupos, tidos pelo nazismo como inferiores, além da criação do programa Lebensborn:

 

“Heinrich Himmler criou-o em 12 de dezembro de 1935. O objetivo da sociedade era dar a jovens “racialmente puras” a oportunidade de terem filhos em segredo. Depois, a criança era repassada à SS, que cuidava de sua adoção e “educação”. (...) com o objetivo de criar uma “super-raça”, a SS transformou essas “creches” em pontos de encontro de alemãs “racialmente puras” que quisessem conhecer homens da SS e terem filhos com eles.” (SERENY, 2007, p. 65).

 

“Purificar a raça. Aperfeiçoar o homem. Evoluir a cada geração. Se superar. Ser saudável. Ser belo. Ser forte. Todas as afirmativas anteriores estão contidas na concepção de eugenia.” (DIWAN, 2007, p. 21) Portanto o regime nazista se apropriou das ideias eugênicas para difundir a superioridade ariana que estava presente no ideário do nazismo. A intenção seguinte era usar outro fator “científico” para corroborar as ideias de superioridade e definir os padrões arianos de beleza e força física. Entrava em cena o cinema de Leni Riefenstahl e seus filmes documentários.

“Estamos convencidos de que o cinema constitui um dos meios mais modernos e científicos de influenciar as massas. Um governo não pode, portanto, menosprezá-lo” (FURHAMMAR; ISAKSSON, 1976, p. 39). Essa frase foi dita pelo ministro da propaganda da Alemanha Nazista, Joseph Goebbels que, com seu Ministério da Propaganda, foi responsável por mais de 1350 filmes durante os 12 anos de regime nazista (LENHARO, A., 2006, p. 53). 

“Com Leni Riefenstahl, e seus famosos Triunfo da Vontade e Olympia, o cinema nazista não só propôs uma nova modalidade de filme de propaganda, mas também alcançou um nível invejável de realização estética.” (LENHARO, 2006, p. 59). O cinema de Riefenstahl para Leif Furhammar e Folke Isaksson (1976, p. 97) “é uma das maiores realizações, talvez a mais brilhante de todas na história da propaganda cinematográfica”. 

O filme O triunfo da vontade retrata o 6º Congresso do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) que ocorreu entre 4 e 10 de setembro de 1934, em Nuremberg, Alemanha. Planejado para ser o maior e o mais suntuoso do país, o Congresso tinha como intenção demonstrar o poder e a união do Partido através da liderança de Adolf Hitler. O Führer é o grande centro do filme, onde Leni Riefenstahl buscou foco em uma das maiores habilidades do líder nazista que era justamente a oratória. Ufanistas e contundentes, seus discursos são carregados de um nacionalismo extremo, conseguindo, portanto, conquistar e empolgar as massas. 

Riefenstahl tentou revelar um Hitler com características messiânicas, vindo dos céus para poder salvar os seu povo. Isso ficou evidente na primeira cena quando o Führer chega de avião em Nuremberg e é ovacionado pela multidão que o espera ansiosa. Essa multidão, por sua vez, também foi retratada com muito cuidado na película, onde em sua grande maioria, apenas pessoas jovens, bonitas, saudáveis, fortes e loiras – a raça ariana, - recebem closes das câmeras. 

O filme, que possui 110 minutos de duração, demorou cinco meses para ser editado. Edição essa que contou com a participação e coordenação da própria Leni Riefenstahl. A equipe de produção contou com mais de 170 pessoas que captaram mais de 50 horas de filmagens. O triunfo da vontade foi oficialmente lançado em 28 de março de 1935, em Berlin no Ufa-Palast-am-Zoo.

Já Olympia vai retratar o 11º Jogos Olímpicos Modernos de verão, que teve Berlim como sua cidade sede e foi realizado de 1º a 16 de agosto de 1936. O filme se divide em duas partes, onde na primeira, intitulada de Festival do povo [Fest der Völker], a cineasta retratou a história dos Jogos Olímpicos, as tradições dos antigos povos na cidade de Olímpia e os eventos de campo nos Jogos de 1936. A segunda parte, Festival da beleza [Fest der Schönheit], mostra as provas de pista e de campo dos Jogos de Berlim.

A intenção do filme foi o culto ao corpo humano, no caso o corpo do jovem ariano, que segundo a ideologia nazista, tinha que ser saudável, vigoroso, forte e belo. Isso fica evidente nos primeiros 10 minutos da primeira parte do filme, onde Leni mostra estátuas gregas e as dá o devido destaque como a representação do padrão de beleza e de perfeição e, logo em seguida dessa demonstração, mescla essas estátuas com os atletas alemães, fazendo com que eles sejam a personificação da beleza e da perfeição apresentada. 

Para a produção de Olympia foram usados cerca de 800 mil metros de filme e contou com 42 cinegrafistas, sendo que cada um deles havia se especializado em uma modalidade esportiva diferente, além de mais 100 pessoas divididas entre técnicos de som, diretores de fotografia, iluminadores e motoristas. Como equipamentos, Riefenstahl contou com câmeras de ultima geração, lentes teleobjetivas de 60 mm, câmeras de mão, câmeras subaquáticas além de um dirigível que sobrevoava o Estádio Olímpico com uma câmera acoplada, afim de registar imagens aéreas. Todo esse aparato deu a Leni Riefenstahl mais de 200 horas de filmagens que resultaram em dois anos de edição que contou, além da participação efetiva da própria cineasta, com quatro salas de edição com os mais modernos equipamentos de manipulação de som e imagem. O filme foi lançado em 20 de abril de 1938, no 49º aniversário de Hitler.

O objetivo desses dois filmes era evidenciar a raça ariana e o nazismo e, sobretudo, a veiculação da ideia de se criar um “homem novo nazista”. Essa nova categoria de ser humano é apresentado como o modelo ideal a ser seguido e fincado no imaginário coletivo como um ser humano que fosse belo, forte, saudável e, além dos atributos físicos, possuir uma moral, ideologia e conduta nacionalista, onde proteger a raça nazista e prolifera-la para domínio sobre o mais fraco era de suma importância. “(...) na construção do ideário nazista, a sociedade sempre aparecia como purificada moralmente, e cada um dos cidadãos deveria cuidar da defesa da raça como da força do império nazista.” (LENHARO, 2006, p. 62)

A partir desse contexto, esse estudo pretende analisar como o cinema de Riefenstahl representou esse discurso eugênico de super-raça, usando as ideias de representação de Roger Chartier, que dizem que em diferentes lugares e tempos a realidade social é construída por meio de classificações, divisões e delimitações e que essas representações podem mudar, pois são historicamente construídos e determinados pelas relações de poder e pelos conflitos de interesses dos grupos sociais.

E junto com esse sentido de representação, pretendemos analisar os estudos de Walter Benjamin a respeito da reprodução artística, onde o cinema, ao contrário de outros tipos de arte, tem como função ser difundido e reproduzido para grandes públicos, pois não possui sentido de unidade, ou seja, quanto mais vezes for reproduzido e visto mais sentido terá a sua produção. E esse pensamento colabora diretamente com a frase dita por Goebbels que o cinema é uma das maneiras mais modernas e científicas de se manipular o grande público e, portanto, usá-lo para transmitir a mensagem que desejar é primordial para a difusão de ideias, por mais controversas que elas sejam.

Além disso, estabelecer uma conexão entre a eugenia como ciência do início do século XX com os estudos de Thomas Kuhn que trabalha com a hipótese de que a ciência não é um ato isolado e unicamente racional do cientista, mas sim o produto científico é carregado de subjetividade e interferências externas. Em seus estudos a ciência é entendida como uma atividade concreta que se dá ao longo do tempo e que em cada época histórica apresenta peculiaridades e características próprias, chamando esse fenômeno de perspectiva historicista que, por sua vez, contrapõe com a ciência que é entendida como uma atividade completamente racional e controlada, chamada de perspectiva formalista.

Portanto, com a ajuda dos estudos de Kuhn, o presente projeto pretende analisar a eugenia como ciência de seu tempo e como essa ciência foi retratada no cinema de Leni Riefenstahl que, por sua vez, propagava as ideias nazistas de Adolf Hitler que eram completamente contaminadas pelos conceitos eugênicos de controle da raça humana mais forte de Francis Galton.

 
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